Adolescência (Netflix): Um Espelho das Falhas Contemporâneas na Função Parental
- Carla Moreira
- 21 de abr.
- 3 min de leitura
A série Adolescência, da Netflix, é um retrato inquietante da juventude atual. Muito mais do que um drama juvenil, ela se apresenta como um campo fértil para reflexões profundas sobre os impasses da família moderna, os efeitos da ausência de limites e os riscos de um mundo virtual sem fronteiras.
Do ponto de vista psicanalítico, a narrativa escancara a fragilidade das funções parentais e os desdobramentos subjetivos que emergem quando os pais abdicam do lugar simbólico que lhes cabe na constituição psíquica dos filhos.
O que salta aos olhos desde os primeiros episódios é a dificuldade dos pais em exercer a autoridade necessária para oferecer contorno e segurança aos filhos. Essa autoridade, na perspectiva freudiana, não é autoritarismo. É função simbólica. É a capacidade de nomear, de proibir, de marcar a diferença entre o possível e o impossível, entre o desejo e o gozo imediato. A ausência dessa função deixa o adolescente à deriva em um mundo sem direção — não por falta de liberdade, mas por excesso dela. E o excesso, nesse caso, funciona como abandono.
Freud já nos advertia que a constituição do sujeito passa, necessariamente, por uma travessia no campo do desejo, mediada por interditos. A função paterna — que pode ser exercida por qualquer figura que simbolize a lei — é quem realiza essa mediação. Ela impede a fusão com o desejo materno e introduz o sujeito na cultura, no laço social, na linguagem. Quando essa função falha, o sujeito pode ficar preso em um circuito de angústia, desorientação e repetição. É exatamente o que vemos no protagonista da série: um adolescente que tenta, de forma desastrosa, organizar seu mundo interno por meio da autodestruição, da busca por validação virtual e do enfrentamento constante das figuras adultas.
Outro ponto crucial que a série aborda é o uso da internet como território sem lei. O ambiente virtual se transforma em um espaço onde a pulsão escapa a qualquer forma de simbolização. Sem supervisão, crianças e adolescentes ficam expostos não apenas a conteúdos inadequados, mas a formas de prazer que ainda não são capazes de processar. Isso pode gerar fixações, compulsões e dificuldades no campo do desejo, transformando a sexualidade em espetáculo e o corpo em moeda de troca. A tela, que poderia ser meio de expressão e comunicação, torna-se espelho narcísico, onde o sujeito se vê apenas pela perspectiva do outro. A imagem vale mais do que a palavra. A aparência mais do que a experiência.
A relação do menino com as figuras femininas é mais um ponto que merece atenção. A presença de mulheres fortes, mas emocionalmente instáveis ou ausentes, compõe um cenário psíquico marcado por ambivalência. Há desejo, mas também medo. Há fascínio, mas também ressentimento. A figura da mãe, por vezes enigmática ou excessiva, ocupa um lugar que impede o amadurecimento emocional. Freud nos ajuda a pensar essa dinâmica através do complexo de Édipo: quando o menino não consegue elaborar a separação da figura materna, ou quando a função paterna é insuficiente para interditar esse vínculo, a relação com o feminino se torna confusa, carregada de tensão e culpa.
Ao longo da série, a dificuldade do protagonista em se vincular de maneira saudável a qualquer figura feminina revela um conflito inconsciente que vai muito além da adolescência. É o reflexo de uma estruturação falha, de uma ausência de referências simbólicas que permitam ao sujeito se posicionar no mundo com desejo, mas também com limites. Em vez disso, ele atua, age, reage. A ação toma o lugar da palavra. E quando não há palavra, o sintoma fala.
Adolescência não é apenas uma série sobre juventude. É um chamado para os adultos. Um lembrete de que ser pai ou mãe é muito mais do que prover e amar: é sustentar um lugar de referência, de escuta, de limite. É ser aquele que pode dizer “não” quando necessário, e “sim” quando possível — não a partir do medo de desagradar, mas do compromisso com a formação psíquica do outro.
A psicanálise não busca culpados. Ela se interessa pelas tramas inconscientes que sustentam nossos modos de amar, sofrer, educar e repetir. E a série, ao nos colocar frente a frente com o desamparo contemporâneo, nos convida a escutar mais profundamente o que estamos deixando de dizer — ou de proibir — aos nossos filhos.
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